segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Hora de sonhar

Naquele dia, justo naquele dia, ele resolveu deixar de cumprir o que disciplinadamente cumpria todos os dias. O relógio? Ah, este ele deixou na mesa de cabeceira, pois, para a aventura daquele dia, não se fazia necessário. Deixou o jornal com o porteiro do prédio, já que as notícias poderiam esperar. O que não poderia esperar era o tempo que havia marcado com ele mesmo. Havia cansado dos protocolos, cansado de sorrir sem que fosse realmente provocado tal ato. Sucumbiu à tentação de desfrutar dos melhores paladares, aqueles que há tempos não sucumbira. Depois de alimentar seu corpo, mais com os olhos do que realmente se fazia necessário, deitou-se num banco à beira do rio. Sim, ele cochilou. Dormiu e sonhou. Dessa vez não queria sonhar. O sonho estava ao seu alcance, ao menos naquele dia. Então acordou. Com toda aquela paz, caminhar com os pés na água fresquinha lhe cairia muito bem. Foi o que fez. As horas passavam sem que sequer percebesse. Como que num ímpeto, seu olhar fixou-se naquela jovem. Não sabia por que olhava com tanto afinco para a jovem que sequer conhecia. Aproximaram-se e apenas se olharam mais fixamente. Durante meses, anos, a rotina do jovem não permitia que desfrutasse de momentos tão simples. Não queria que acabassem. Fazia-se necessário eternizá-los. Contudo, um barulho ensurdecedor fez com que desse um salto daquele banco. Mais um barco ancorava naquele pequeno porto.  Ele acordou. Adormecera e por ali havia ficado por horas e horas. Não foi dessa vez que ela vinha a seu encontro, ao menos não de verdade. Hora de voltar para casa. Esse foi um entre outros tantos momentos que ele teria consigo mesmo.

domingo, 24 de outubro de 2010

Medo ou ressentimento?

                    Segundo Nietzsche, a essência da felicidade é não ter medo. Que medo é este que nos persegue, impedindo que façamos coisas que o nosso desejo mais íntimo nos permitiria? Creio que a frustração por um desejo contido pode, muitas vezes, levar à culpa por não termos permitido que coisas aconteçam, mesmo que estas poderiam levar ao erro. O ressentimento, por sua vez, é aquele sentimento que nos faz remoer essas coisas, esses fatos acontecidos e que, por algum motivo, não aconteceram em sintonia para com os dois lados: o mais fraco e o mais forte. O ressentimento leva à parte mais fraca a necessidade de culpar o lado mais forte e nele incutir, mesmo que de pensamento, a má consciência. Ao ressentido resta a posição de eterno ressentido. Por outro lado, a culpa é uma via de duas mãos. Penso que, em muitas situações, podemos nos sentir culpados e ressentidos ao mesmo tempo: culpados, por nós mesmos sentirmo-nos nesta situação, por não termos feito algo; e ressentidos, não por sentirmos a necessidade de encontrar um culpado, até porque este pode ser nós mesmos, mas pelo simples fato de remoer o erro.

Nina Simone - Mr Bojangles

Servir, verbo intransitivo

Decidi não mais servir e sereis livre (LA BOÉTIE).
Servir, verbo intransitivo. Função sintática atribuída ao verbo que, em muitas situações, exige transição: de um lado os que são forçados à obediência, pois nem sempre podem ser os mais fortes e, de outro, os tiranos, cada vez mais dispostos a tudo aniquilar e destruir. Contudo, não é necessário combatê-lo, muito menos dele defender-se, pois ele se aniquila por si, desde que não consintamos com a servidão. “Não se trata de lhe arrancar nada, mas apenas de nada lhe dar” (LA BOÉTIE).
Por outro lado, ainda sob o mesmo enfoque, a escola em muito contribui para a servidão voluntária, tanto de seus professores, quanto de seus alunos, porém servir é uma questão de estar sujeito a. Em muitas situações, a servidão está no fato não de sermos impedidos de fazer, mas sermos obrigados a fazer.
Enquanto educadores exercemos poder através de nossas ações e apreensões que adquirimos no ambiente escolar, no qual construímos e fazemos evoluir um sistema teórico que expressa necessidades. A palavra muitas vezes se põe a serviço desse poder. Entendemos como poder tudo aquilo que se compreende a mais quando se tenta deslocar os limites dos poderes.   
O poder está na transformação e reside no processo de transformação da realidade de modo diferente. Aí reside o papel do educador em relação ao aluno (e vice-versa, por que não?): proporcionar estes momentos de observação e reflexão de si e do mundo.
Deixamos de ser servos a partir do momento em que deixamos de adular o tirano, não permitindo o embrutecimento, para compartilharmos saberes. Estes residem, também, na observação e são o resultado dela. Precisamos estar atentos a tudo o que nos cerca. Ajudar o nosso aluno a adquirir poder e construir saberes significa associá-lo a um esforço coletivo de compreensão da situação na qual ele e todos nós estamos.
Vejo que o embrutecimento favorece a servidão. Mudaremos este quadro a partir do momento em que passarmos a fabricar saberes. Inventamos saberes quando nos damos conta dos fatos e os compreendemos: procurando fazer com que seja outro o faz ser o que é. O saber é um processo de transformação e sua natureza se define pela própria natureza da transformação.
Nas palavras de La Boétie, “é o povo que se sujeita e se degola; que, podendo escolher entre ser súdito ou ser livre rejeita a liberdade e aceita o jugo, que consente seu mal, ou melhor, persegue-o”. Assim vejo a tirania do pedagógico. Não permitamos ser súditos. Sejamos livres. A promoção coletiva opõe-se ao sucesso individual, à tirania de poucos.
 A liberdade reside na afirmação do direito que cada um tem de pretender a emancipação. “Decidi não mais servir e sereis livre” (LA BOÉTIE), uma vez sendo intransitivo o verbo servir, não há relação de dependência, não há solidificação entre a relação servo-tirano; logo, não há mais relação.

A tua Paz

Eu quis tanto ser a tua paz (Caio F. Abreu): é tão simples e complexo ao mesmo tempo. Sem a pretensão de querer ser, tampouco ter, vivemos à procura de paz. Não que queiramos que alguém nos dê o que basta fecharmos os olhos e aí (sim!) enxergarmos o que sempre foi nosso. Tudo está, nada será. E o que mais me inquieta é alguém apostar todas as suas fichas em outrem, como se só o outro fosse capaz de solidificar o que já é líquido (e que bom que tudo passa a ser líquido). Chega de embotamento. O que embota, mata. E, porque embota, é mais fácil manipular. A vida é líquida. E assim tenho a nítida impressão de que tenho mais paz, quando encontro-me comigo mesma, com minhas angústias, minhas fraquezas, minhas frustrações. Tendo a minha paz, tenho, talvez, condições de ser a tua paz.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vivemos e Acontecemos

Como um espetáculo, vivemos enquanto acontecemos... se nada acontece em nossas vidas, apenas existimos. Para que possamos de fato sentirmo-nos vivos, precisamos pertencer, e é o presente que nos dá essa certeza. O depois que ainda vivemos também é o presente. É essa sensação de presente, de vida, que nos diferencia de seres de outras épocas, de outros tempos. Tudo o que nos acontece, no presente, é o ponto de latência de que algo dentro de nosso ser está sendo gestado... Por isso dizer que cada um de nós é a emergência de um acontecimento... afinal, estamos sempre desejando que algo nos aconteça. Assim, podemos afirmar que somos seres modernos (ao contrário daqueles que seguem modismos, que são seres pequenos)... ser moderno não é apenas viver o presente, não é partir para descobrir a si mesmo, nossos desejos e nossas verdades escondidas... ser moderno é buscar inventar-se a si mesmo, é romper com a tradição, é ter sentimento de novidade, é a vertigem do que passa e do que se passa conosco... é não aceitar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura, é sermos flexíveis... ser moderno é recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele...